sexta-feira, 1 de junho de 2007

A Pseudo-Aspirante a Psicopata da Biblioteca Infantil.

Irradiando a incrível alegria dos primeiros anos de vida, as criancinhas adentraram a biblioteca, correndo e fazendo barulho. A tímida e recatada bibliotecária logo chamou a atenção dos pequenos homenzinhos e mulherzinhas, em tom de falsa autoridade, dizendo que era proibido correr. Falsa autoridade, sim, pois era óbvio que a aspecto introspectivo daquela moça baixinha e sardenta não reprovava, de fato, a atitude ousada de correr e fazer barulho, ainda que ela soubesse que os meninos poderiam se machucar em uma possível queda.

("Besteira. Machucar faz bem ao caráter!", tinham lhe dito. Mas ela não entendera muito bem o propósito daquela afirmação, ou talvez não quisesse entender. De qualquer maneira, não parecia muito saudável pensar nisso.)

Fingira braveza, sim; como poderia ir contra algo que, secretamente, era sua maior ambição? Como poderia se opôr de forma sincera a um ato almejado pelos seus desejos mais escondidos, mas que não era efetivamente colocado em prática devido ao medo?

Ah, o medo. O medo de agir de acordo com sua própria vontade, o medo de ser notada, o medo de rasgar as cordas vocais ao gritar por socorro, o medo de correr. A corrida era para ela uma representação dos seus desejos e uma libertação de seus receios; é claro que poderia correr por medo, mas ainda assim seria um ato louvável, pois denotaria, senão uma vontade interior, uma resposta ao exterior; ou até um simples reflexo.

Correr era viver. Ela não tinha lá muita consciência se vivia ou não. Pessoas não a deixavam viver, mas seria ridículo agora colocar a culpa em cima dos outros; não, ela tinha consciência da sua grande parcela de culpa naquela situação toda. Não corria porque deixava paralizarem-se as próprias pernas, não vivia porque não se permitia à força de vontade necessária para tal. Ela era ridícula, um dejeto humano, um lixo hospitalar, nada menos.

Queria, desesperadamente, ser como aquelas crianças. Queria, desesperadamente, voltar a ser aquelas crianças; lembrava-se, vagamente, de sua infância, quando a vida ainda era felicidade e ausência desses complexos idiotas. Fora uma daquelas crianças, e provavelmente cometera suicídio e fora enterrada como indigente em um cemiteriozinho qualquer.

Ficara sabendo, em um jornal por aí, de um assassino que tinha sido preso. Era um travesti psicopata que matava mulheres consideradas sensuais, das quais ele sentia profunda inveja. Tinha sido preso na semana passada, e assumira todo o crime falando friamente, sem demonstrar qualquer tipo de sentimento. Matar pessoas, isso já tinha passado rapidamente pela cabeça dela, algumas vezes. Mas não era muito freqüente. O medo entra, aqui, de novo. E, se fosse seguir o caso do tal serial killer, que matava pessoas das quais sentia inveja, ela teria que matar as pobres criancinhas.

Ok, não. Não sentia essa inveja negativa de espíritos destrutivos que sentem aversão aos próprios desejos; não, não e não. A aversão que ela sentia era pelo o que ela tinha se transformado, e não pela autonomia que deseja conquistar.

Bem, pelo menos ela ainda não era uma psicopata.

...

O fato de ainda não ter matado alguém seria algum sinal de que não estava completamente perdida ainda? Seria isso um sinal? Lançou a pergunta para si mesma, mas a pergunta bateu nas paredes de seu cérebro e voltou da maneira maneira. Eco. Eco. Oco. Sua cabeça era oca, e suas perguntas não eram possuiam respostas; enfim, quanto ao caso de ser ou não psicopata, não chegou à conclusão alguma. Talvez não fosse sinal de absolutamente nada, e ela estivesse apenas filosofando coisas bestas só para amenizar a própria dor de não existir. Com certeza devia ser isso.

As criancinhas então escolheram, cada uma, um livro de histórias infantis que a jovem bibliotecária colocara na estante. Era inacreditável observar a euforia dos sorrisos e a explosão de brilhos nos olhinhos dos pequenos humanos ao escolher uma história da qual gostavam bastante. Era uma verdadeira epifania de felicidade, um êxtase, um orgasmo múltiplo infantil.

E depois de escolher os livros dos quais gostavam, as crianças saíam pela mesma porta, correndo da mesma maneira e fazendo a mesma quantidade de barulho. Sentiu um aperto no peito, como se uma parte de si estivesse indo embora para sempre e ela nada pudesse fazer para voltar atrás; e assim se sentiu, até que o pezinho da última criança desapareceu através da porta.

Sentia uma afeição por aquelas crianças, estava realmente feliz por elas estarem felizes, mas não estava feliz por si mesma. Olhava pra dentro e a única coisa que enxergava era seu aspecto absurdamente destruído. Devia ser essa a agonia dos espíritos que morreram e ficaram presos ao lugar onde nasceram, sem que ninguém os enxergue, sem que ninguém se comunique, sem nada além de pensamentos e abstração. Estava em pedaços.

Ela poderia ter chorado todas as lágrimas possíveis, ela poderia ter derramado todos os rios do mundo tamanha a dor que sentia ao observar aquela cena; no entanto, nem para isso servia. Se a vissem chorando, não saberia como explicar os motivos, e isso seria um verdadeiro desastre. Então ela fez força com os olhos, comprimiu a boca e engoliu, forte. Colocou para dentro toda a angústia que deveria ter vomitado, colocou tudo para dentro e agora só restava seu corpo ser corroído por tudo aquilo.

...

"Quem me dera ser psicopata", pensou consigo mesma.